sexta-feira, 23 de junho de 2017

Do terror do fogo ao medo "da fome"

Nas poucas indústrias que há nos concelhos de Pedrógão Grande, Figueiró dos Vinhos e Castanheira de Pera teme-se o futuro. A razia na floresta pode deixar os pratos vazios. Mas o medo não tolhe a vontade de recuperar.
Há um ano e meio, o cérebro da empresa morreu num acidente. Uma tragédia para a Carvalhos Lda. e um rombo na dinâmica de uma das mais importantes empresas da fileira da madeira da região. Agora, de uma vez, o outro sócio (Mário) e o sobrinho ("o operacional") morreram. O fogo apagou-lhes a vida.
Um segundo abalo que Maria do Céu, administrativa de 61 anos na empresa com sede em Figueiró, não sabe se a firma aguentará. E esta é uma unidade tentacular. É ela que agrega a produção de várias empresas que descarregam ali a matéria-prima antes de ser transformada.
Em Pedrógão Grande, Figueiró dos Vinhos e Castanheira de Pera, os empresários olham para o futuro com receio. A cada conversa, um denominador comum. A palavra "fome" qualifica o que aí vem, teme-se. A matéria-prima está destruída, as máquinas queimadas e a transformação naturalmente parada.

"Muita gente vivia do pinheirito e do eucalipto. Presentemente está tudo queimado. A madeira não vai ter grande saída", enuncia Maria do Céu.
Maria do Céu não sabe o que os próximos tempos reservam à empresa em que trabalha. "Queremos continuar, mas não é fácil. Temos as nossas madeiras todas queimadas. Não vai haver onde levá-las se não houver mão do Governo e de outras entidades", crê.
Mas tem uma certeza: "Fome vai haver".

Há muitas empresas unipessoais, com um ou dois empregados, que dependem da Carvalhos Lda. para escoar o produto. Não têm quota suficiente para contratar encomendas com uma celulose ou uma serração e dependem da empresa de Figueiró.
Teme-se um efeito dominó que comprometa muitas economias familiares.
Na Fernando Fernandes, uma serração na freguesia da Graça, em Pedrógão Grande, as madeiras ainda fumegam. Nos dois pavilhões há carcaças de máquinas, há caixilharia derretida, há vidros rebentados, há destruição em estado puro.
O patrão ia comprar mais uma máquina. Essa máquina valeria mais quatro postos de trabalho e mais um mercado, o espanhol. O fogo faz com que nada disso valha agora.
"Isto veio alterar tudo, só para reparar as máquinas vão ser precisos entre um e dois meses e para algumas vai ser ainda mais", diz o administrativo António Ricardo.

A empresa é para continuar. O patrão já garantiu. Os prejuízos ainda não estão contabilizados, mas ardeu um camião que vale à volta de 60 mil euros, uma máquina para descarregar matéria-prima que, nova, são 200 mil euros, um empilhador que custa 50 mil euros e mais o material danificado e o edifício que ficou comprometido. Tudo a somar.
António é de Ferreira do Zêzere e não tem familiares envolvidos na tragédia, mas os outros sete que ali trabalham têm. Foram-se abaixo. Mas se as perdas são duras, e o luto profundo, o futuro começa agora, acredita.
"Há muito trabalho para fazer", sintetiza.
Ali ao lado, separado da serração por apenas uma rotunda, está Albano Graça. No mesmo espaço convivem uma oficina, uma cafetaria, e um parque de automóveis. Ele lutou até à exaustão para defender o que é seu. Ajudou amigos. Tentou salvar um desconhecido que morreu depois de o carro arder. Garante que queimou o pouco cabelo que ainda tem.
No parque automóvel arderam-lhe cinco carros e um camião de transporte. Dezenas de milhares de euros de prejuízos. E não há seguro. Há dois anos não lhe aceitaram a revalidação da apólice de responsabilidade civil.
Albano explica que a economia da região está toda interligada. Se um sofre, os outros vão ter dores. "Houve muitas perdas de tractores agrícolas, que faziam muitas manutenções, mudavam óleos, muita máquina e barracões destruídos. Para mim, é muito menos negócio", afirma.
Mas no meio do negro escuro, há aquele sentimento de resignação que se sintetiza na expressão "do mal o menos". "Tenho dois reboques a funcionar, os carros de trabalho estão a funcionar e isso é bom", revela. É algum dinheiro que entra e faz girar a máquina.
Depois, a conversa sai do seu caso particular para o panorama geral da região. "Esta é uma zona de floresta e há muita gente a viver dela. Vão ser seis a sete meses de trabalho a cortar isto tudo e depois vai ser um futuro de fome, com os madeireiros a fechar porque não têm onde ir comprar, nem podem continuar o seu trabalho", identifica.
Um pouco mais acima, está a zona industrial da freguesia propriamente dita. Espaço que naquele caso é sinónimo de quatro empresas. O cenário é este: um lagar destruído onde o dono tinha investido dezenas de milhares de euros há bem pouco tempo; e a Ennerpellets, que emprega 80 pessoas e está dramaticamente comprometida.
Os silos ainda fumegam passados mais de cinco dias do incêndio. Na imprensa nacional já se diz que a empresa que faz aglomerados de biomassa florestal vai fechar. Os administradores estavam a reunir-se na quinta-feira, mas a insistência para uma entrevista esbarra num virar de costas.
Metros ao lado está a empresa de caixilharia João Paulo Alumínios. Não sofreu danos. Os alarmes tocaram por causa do calor à passagem das chamas, mas o fogo serpenteou à volta.
"Tivemos sorte. A empresa acabou por ficar", lança Helena Carvalho.
A sua sorte sabe que foi o azar de outros. "Vai ser muito complicado. Os concelhos vivem muito das serrações e as madeiras foram muito afectadas", lembra.
Portanto, para ela a soma é simples: "Primeiro foi o fogo, agora a fome."
Mas e as ajudas financeiras? Isso não será importante? "Será que as ajudas vêm? E em que tempo? E para as pessoas que trabalhavam?". As questões saem em catadupa a Helena.
Nesta quinta-feira, o primeiro-ministro, António Costa, afiançou que o fundo solidário para apoiar as vítimas da tragédia foi aprovado. Este será apenas um dos vários apoios disponíveis, que estará ao dispor dos municípios de Pedrógão Grande, Figueiró dos Vinhos, Castanheira de Pera, Góis e Pampilhosa da Serra. O Governo diz que não faltará apoio a ninguém que tenha sido afectado.
Em Castanheira de Pera, mais uma serração. A Progresso Castanheirense. Sandra Carvalho, gestora da Serração Progresso Castanheirense, não parou durante os últimos dias. Primeiro, as chamas, o perigo; depois, os reacendimentos e a protecção do que restou dos bens; agora, uma roda-viva de entrevistas.
Ali, naquele pólo industrial no lugar da Moita, pouco se deve aproveitar. O exercício de imaginar o antes, ao ver o agora, é complexo. Tudo está parado. Não mexe. Está preto.
Antes, a vida do lugar era animada por mais de 30 trabalhadores permanentes. A empresa tem quase 50, no total dois pólos.
Sandra também não tem noção dos prejuízos, mas já receberam uma equipa de peritos para os avaliar. Sabe que lhes espera mais de meio ano de trabalho. Só para pôr tudo operacional, mas diz que tem forças, que há ânimo.
"O dono está com vontade de reerguer isto. Vai ser muito difícil. Vão ser meses a limpar, a reconstruir, a remodelar. Temos também hectares para voltar a reflorestar", enumera.
Fala-se muito de ajudas. Sandra tem um pé atrás, mas uma mão estendida. "O pobre desconfia, tudo o que temos é do nosso trabalho, mas temos de ter fé", sublinha.
A gerente avança que não vai abrir a porta para ninguém sair, mas que, se alguém não quiser ficar, vai compreender. Os próximos meses serão duros.
"Vamos ter salários para pagar mensalmente e vai ser muito difícil porque não vamos facturar, mas espero que toda a gente seja compreensiva e tenha força", pede.
Por fim, desabafa: os fogos foram um tormento, uma tragédia, mas as réplicas das chamas vão fazer-se sentir nos próximos tempos. "A nossa aflição não terminou. Dia 30 está a chegar e há salários para pagar".
In Sapo24