Uma noite inteira para subir ao inferno
O i demorou horas a chegar a Monchique, por entre a serra engolida por chamas. À chegada, a vila já não era vila. Não havia luz, telecomunicações ou pessoas.
Quase às duas da manhã, Monchique é só um lugar fantasma. Não há luzes na rua nem dentro das casas e metade da vila foi evacuada. À escuridão da noite soma--se uma cortina de fumo e de cinzas e há o silêncio típico dos lugares desabitados. Um ou outro carro da GNR vai atravessando a vila a uma velocidade apressada. No escuro não se dá conta de que existam lojas e cafés fechados. As montras foram engolidas pelo fumo e só são denunciadas pelos alarmes de segurança a gritar, sozinhos no vazio. De vez em quando há um vulto que passa, a um ritmo rápido, de lanterna na mão ou de telemóvel em punho. As comunicações praticamente não existem, ainda que estejam intermitentes, e a campainha da residencial não funciona, provavelmente porque não há luz na vila há já mais de três horas. Com um golpe de sorte, conseguimos telefonar. Lá dentro ouve-se o telefone a clamar, aos berros, mas ninguém atende ou vem à porta.
Na noite de anteontem, Monchique parecia saída de uma guerra – completamente perdida para a força do fogo, que andou persistentemente à roda da serra, feito de novelos furiosos. Há menos de 24 horas, a vila estava cercada pelas chamas. E o cenário voltou a repetir-se uma vez mais. É que no incêndio que lavra no Algarve desde sexta-feira, o que já ardeu volta a arder, numa insistência aflitiva. Quem pôde sair para casa de familiares deixou Monchique por volta das 22 horas. E quem não teve a quem recorrer instalou-se na escola local, onde os escuteiros montaram camas improvisadas para receberem os habitantes. Outros preferiram alugar quartos em hotéis de Portimão e Alvor – a preços ainda mais escandalosos do que os que normalmente já são praticados na época alta.
Perto da escola fica o Posto de Comando Operacional, o cérebro do combate, onde militares da GNR, elementos do INEM e da Proteção Civil se aglomeram. Cansados. Alguns têm a sorte de poder regressar a casa e é uma patrulha da GNR que acaba por nos escoltar de volta até Portimão.
Quatro horas antes, fazíamos a primeira tentativa para chegar à vila. Primeiro, pelo acesso da Nave Redonda. Depois, pelo de São Marcos. Em vão: as estradas estavam cortadas e o prognóstico era, segundo bombeiros e militares, muito negativo. Descemos a Silves, por recomendação da GNR, e tentámos a estrada municipal que atravessa Odelouca. Perto das Caldas de Monchique, a serra arde de um lado e do outro. Há gente aflita nas bermas da estrada e os bombeiros, de muitos sítios do país, não têm mãos a medir. Outros medem forças com a própria força e estão deitados no chão a tentar descansar. Nos miradouros há quem observe o mar de chamas que continua a engolir as serranias no meio da noite, galgando uma serra e outra e ainda outra a seguir. Visto de longe, o fogo parece um enorme exército de demónios a caminharem de forma desconcertadamente concertada. Muito devagar.
Uma patrulha da GNR surge na estrada, em sentido contrário. Perguntamos se conseguimos chegar a Monchique. “Se conseguirem, é continuarem em frente. Mas tem de ser já. A estrada está a começar a arder.” Será seguro? “A irem é agora, nem mais segundo nem menos segundo.” Engolimos em seco e avançamos pela estrada de serra fora, em brasa de um lado e do outro. Há pinheiros caídos na estrada, pedras no alcatrão, fios soltos, faúlhas gigantes a rodopiar pelo ar e a caírem sobre o carro. Mas uma hora depois e à chegada a Monchique só havia, afinal, silêncio. A calma lenta de uma guerra que tinha acabado de acabar, mas que no dia seguinte (ontem) voltaria a voltar.
In Jornal I
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