Monchique. Sair de casa e ficar à espera que a mão do Diabo se vá embora
Ao quinto dia, o incêndio não deu tréguas. Continuou a varrer montes e vales e quem teve de sair de casa obrigado só pensa em voltar. Estradas cortadas ajudam ao caos.
Há uma semana, antes de a mão gigante de fogo ter tomado conta de Monchique, os cães da vila começaram a uivar pela calada da noite. Manuel Nicho levantou-se de madrugada e abeirou--se de uma das janelas. Olhou para a rua e não viu nada nem ninguém. Também vigiou nas noites que se seguiram, porque os cães continuaram a uivar em coro, como se fossem uma matilha indignada. “A mim parece- -me que estavam já a pressentir que vinha aí uma tragédia. Nunca ouviu dizer que os cães uivam de noite quando a morte está para chegar?”, pergunta, à porta de casa dos pais, na aldeia de Rasmalho, à beira da EN 266, que liga Portimão a Monchique, e que ontem à hora de almoço foi evacuada por ordem da Proteção Civil.
Manuel Nicho já não chegou a tempo de ver Angelina e Afonso serem levados pela ambulância dos bombeiros encarregada de transportar, para a Arena de Portimão, todos os idosos com dificuldades de locomoção. O casal começou por não querer sair. Afonso, sentado no sofá da pequena sala da casa térrea mesmo ao lado da nacional, ainda teimou em voltar a ligar a televisão, das antigas, que um dos bombeiros desligou quando lhe entrou porta adentro para os mandar sair. Já Angelina insistiu em trocar de roupa. Depois entrou na ambulância meio confusa: “A minha casa vai arder?”
Até ao final do dia de ontem, o fogo não atingiu a aldeia de Rasmalho. E as evacuações, que a Proteção Civil tem justificado como sendo necessárias para garantir que este ano não há mortes, têm sido alvo de críticas das populações. Ainda há quem diga que o fogo de 2003 foi pior que o destes dias, por ter levado mais hectares à frente e com igual fúria, mas no que diz respeito à coordenação e ao socorro, a opinião é outra. “Há 15 anos ninguém foi evacuado. As pessoas ficaram, a ajudar os bombeiros e a proteger as casas. E muitas habitações escaparam por terem pessoas por perto”, recorda Joaquim Bingalho, que ontem, à hora em que Rasmalho era evacuada, tentava arranjar maneira de chegar a Monchique. Mas todos os acessos estavam cortados.
Além da ambulância, houve também dois autocarros da Câmara de Portimão à disposição dos que quisessem deixar a aldeia. Faltou foi “clientela”: poucos aceitaram deixar as casas e só uma meia dúzia quiseram a boleia. Os restantes ficaram, acreditando, quase em jeito de desafio e de raiva, que o fogo não haveria de vir. À beira da EN 266, António Gaspar e a família regavam a vivenda, o jardim e os carros, com os olhos fixos na linha de horizonte, carregada de fumo e escuridão. “Enquanto não chegar cá, não saímos.” Os restantes vizinhos corriam numa azáfama, a guardar motas, rulotes e lenha, enquanto os motoristas dos autocarros se apercebiam da falta de clientela cada vez mais evidente.
Foi à entrada da aldeia que, ontem, a GNR esteve a cortar o trânsito de acesso a Monchique. Por lá passaram centenas de pessoas. Umas, indignadas. Outras, resignadas. Outras ainda, simplesmente curiosas. Também houve VIP: João Soares tentou passar de manhã, e Santana Lopes, que decidiu ir a Monchique “dar um abraço de solidariedade” ao presidente da câmara, perto da hora de almoço. Nenhum dos dois foi autorizado a furar o perímetro de segurança. E o mesmo aconteceu nos acessos entre Silves e Monchique, com os militares da GNR a terem de dar a cara pela decisão da Proteção Civil. Num cruzamento, uma mulher insistia com os guardas que vivia a menos de um quilómetro dali e que precisava de ir para casa. “Está a ver algum fogo lá? Está? Eu também não. Então explique-me por que razão não posso passar?”, gritava. Os dois militares limitavam-se a repetir a ladainha já quase gasta: “Foi as ordens que recebemos, que é para cortar, minha senhora.” A mulher desiste de esperar, larga o carro na berma da estrada e põe-se a caminho de casa a pé, irritada e à torreira do sol, alcatrão fora. Os militares fingem que não veem e uma vizinha, Maria João, observa a cena, incrédula. “Então não se pode ir de carro, mas pode ir-se a pé?” Entretanto chega um casal inglês de namorados. Ele sai do carro, já eriçado, e grita: “My house is over there.” E os dois militares da GNR voltaram a explicar que não era mesmo possível passar, só que desta vez em inglês. “Em 2003 não foi nada assim”, queixa-se Maria João, 50 e poucos anos. “As regras estão muito mais rigorosas, evacua-se os sítios todos, há polícia em todo o lado a cortar as estradas. Acho bem, mas também me parece um bocado demais”, diz.
Já Manuel Nicho diz-se farto de “tantas sirenes”. Decidiu sair de Monchique há quatro dias, de livre e espontânea vontade, e só porque já não aguentava o som dos carros dos bombeiros e da GNR. Preferiu mudar-se para uma espécie de arrecadação, sem água nem luz, a uns metros da casa dos pais, em Rasmalho. Entretanto, perdeu pelo menos 100 mil euros em maquinarias que tinha num terreno. Não dorme há três dias e diz-se “cético com os comandantes dos incêndios que comandam a partir de Lisboa”. Acredita que já não se deixa “enganar”. Até porque há 15 anos foi bem enganado: um dos incendiários responsáveis pelos fogos na serra de Monchique era um amigo com quem andava sempre. Porém, só soube quando ele foi preso pela GNR e antes nunca suspeitou de nada. Nem quando reparou que o amigo costumava andar com sacos grandes no carro com isqueiros lá dentro. Achou que era só uma coleção estranha. “Deitou os fogos a mando de pessoas e recebeu dinheiro para o fazer. Aí vê-se logo muito do que são os incêndios neste país”, atira.
Apesar dos prejuízos, Manuel Nicho tem mais sorte do que Johannes, um alemão de meia idade que desespera, dentro do carro, na berma da estrada que vem de Portimão e dá acesso a Monchique através da aldeia de Casais, que também foi evacuada ontem de manhã. Há dois dias que saiu de casa, no lugar do Cerro da Casinha – onde há seis anos criou uma pequena quinta e onde recebe turistas que aceitam trabalhar no campo –, e desde então não sabe se a propriedade ardeu ou não. Também desconhece se há estradas abertas ou se “algum dia vão abrir”. “Estou completamente confuso”, confessa, muito despenteado. Quando o incêndio se aproximou da casa, meteu-se no carro e fugiu com o único hóspede a quem estava a dar guarida. O turista, um jovem de 20 e poucos anos vindo de Israel, tem-lhe feito companhia. Dormiram juntos no carro e, depois, no jardim de uns amigos em Casais – de onde acabaram por ser expulsos devido à evacuação da aldeia. Ainda tentaram procurar um hotel nas redondezas, em Portimão ou em Alvor, “mas estavam todos completamente cheios ou pediam preços absurdos”. E é no carro que se têm mantido, junto aos militares da GNR, na esperança de que a estrada acabe por abrir. Só então Johannes saberá se a casa que construiu com as próprias mãos – depois de ter deixado a carreira de informático na Alemanha, meio em protesto contra o governo e meio com vontade de viver “no sítio mais bonito do mundo”, na serra de Monchique – ainda existe. “Sou um estrangeiro que veio para o vosso país com vontade de vos ajudar e que agora não se consegue ajudar a si próprio”, desabafa. Ao lado, fora do carro, abrigado numa sombra, o hóspede israelita toca uma melodia triste numa harmónica. Não fosse a dimensão da tragédia e até era uma imagem bonita.
In Jornal I
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