Porque as chamas atacam tanto em Monchique?
Críticas à atuação da Proteção Civil, prioridades pouco definidas e as espécies únicas que se pode perder em Monchique. O i falou com especialistas que explicam ainda o porquê de a serra algarvia sofrer tanto no verão. O problema, diz um deles, é a matéria vegetal que se acumula.
A 5 de agosto de 2003 Monchique começava a viver o início de um pesadelo . O incêndio que consumiu mais de 41 mil hectares, ou seja, quase 80% do concelho, é considerado um dos maiores de sempre em território nacional. E no ano seguinte um outro levou outros 10%. O palco de todas as preocupações dos últimos dias também já o tinha sido em setembro de 2016 – quando as chamas varreram perto de 4 mil hectares. Mas porquê Monchique, e porquê incêndios desta dimensão?
Para Gonçalo Gomes, da Liga para a Proteção da Natureza (LPN), a principal causa é o material vegetal que, não sendo limpo, e perante uma ignição facilmente se torna num incêndio de grandes dimensões.
“Os incêndios obedecem a ciclos, pelo menos no ponto em que estamos no que toca a ordenamento da paisagem, do despovoamento e da desertificação humana. Obedecem a ciclos do crescimento do combustível, ou seja, o tempo que demora o material vegetal a crescer até ser de uma quantidade tal e de uma densidade tal em que uma qualquer ignição – incendiários, o pastor que fez uma queimada para aumentar a área de pastagem, o agricultor que fez uma queimada para se livrar do resto – pode provocar um grande incêndio”, explica Gonçalo Gomes, adiantando que, por norma, se discute muito a origem das ignições, quando o grande problema “é a facilidade com que qualquer ignição se propague por estas zonas”.
Para este responsável da LPN se em Monchique houvesse “paisagens rurais ordenadas, vividas, com uma gestão natural de atividades florestais e agrícolas, ou seja, uma dinâmica normal” estas ignições poderiam continuar a existir sem que dessem origem a chamas com este nível de propagação.
E é por isso que estes incêndios já nem sequer surpreendem: “Já havia uma previsão mórbida do que acabou por acontecer nos últimos dias”, continua o mesmo responsável da LPN.
João Santos, membro da direção da Almargem, uma associação sem fins lucrativos de defesa do património cultural e ambiental, critica ainda a forma como as autoridades têm abordado os incêndios, recordando o que aconteceu há 15 anos.
“No Algarve tem havido uma prioridade que é a retirada das pessoas. A GNR tem uma lista muito atualizada das pessoas que vivem isoladas no meio da serra e em todas estas circunstâncias, essas pessoas eram rapidamente comunicadas e retiradas”, começa por explicar João Santos.
Segundo o responsável, se por um lado é fundamental acautelar a segurança das pessoas, por outro era importante um ataque mais forte às chamas antes de estas entrarem em zonas inacessíveis, algo que diz não acontecer.
“O incêndio de 2003 começou num determinado sítio no norte do concelho de Portimão, correu todo o concelho de Monchique e não lhe aconteceu nada, não morreu ninguém é verdade, mas também nada se fez para impedir a progressão das chamas. As coisas correram muito mal”, afirma, defendendo: “Acho que, sem pôr esta prioridade em causa, devia ter havido meios para travar os incêndio [de 2003], que acabou por entrar numa zona inacessível, porque aí perde-se o controlo”.
“A sorte é que as condições meteorológicas não eram idênticas às de agora”, diz, criticando: “Há aqui estratégias muito pouco cuidadas no que respeita ao ataque ao fogo. No incêndio deste ano, a Proteção Civil tem dito que a primeira prioridade são as populações, a segunda as populações, etc. Não há explicação para que não tenham tido em conta todas estas questões e atacado o fogo de outra forma”.
O que se perde A passagem das chamas levam consigo animais e espécies de árvores únicas no país. Já aconteceu em 2003, repetiu-se em 2004 e 2016 e ainda não se sabe o que vai sobrar no fim do incêndio deste ano.
“Monchique no contexto do Algarve é um ecossistema potencial único e surge quase como um alienígena no contexto algarvio, não apenas pela altitude, como as espécies que ali se podem desenvolver”, explicou ontem ao i, Gonçalo Gomes, referindo que “o grande risco será a afetação do carvalho de Monchique que, em Portugal Continental, apenas existe ali e da adelfeira”.
Nos últimos dias as chamas têm percorrido uma extensa área conhecida por ter vários carvalhos destes já de grande porte, havendo a possibilidade de se ter perdido um dos maiores núcleos que havia em Portugal desta espécie. Para o responsável da LPN trata-se de algo preocupante que é preciso combater, mas com os pés no chão e conscientes do clima do país.
“Aquela teoria de um Portugal sem fogos não faz sentido. O fogo faz parte das nossas paisagens. Se hoje em dia ele está descontrolado é porque a ação das pessoas também desapareceu”, diz, insistindo que “as pessoas antigamente tinham vários procedimentos que hoje em dia batizamos como compostagem etc, mas que eram práticas normais do seu dia-a-dia”.
Além de que limpavam o material vegetal, que hoje se acumula: “Arranjar material para a cama dos animais, arranjar comida para os animais, libertar áreas para a cultura, tudo isso era a tal gestão de combustível natural”.
E se por um lado é preocupante a forma como as chamas varrem muitas espécies únicas, também deixam um rasto devastador nos animais. Diversos voluntários ligados a associações de defesa dos animais que este ano foram apoiar os trabalhos em Monchique têm publicado nas redes sociais várias descrições de animais encontrados com graves queimaduras. Um cenário idêntico ao que aconteceu nos incêndios anteriores e que este ano já levou mesmo um hospital veterinário e uma escola de treino canino a abrir as portas de forma gratuita às situações que inspiram mais cuidados.
In Jornal I
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